22.2.16

Em seara alheia


POEMA PARA UM VERSO DE FERNANDO ASSIS PACHECO

Se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa
No instante da sua força ao meio-dia
Como se a cidade fosse uma pessoa
A entrar na eternidade da fotografia.
A preto e branco como são as colinas
No coração de quem amou esta cidade
Em encontros e mensagens clandestinas
Para o sonho que se perdeu e é saudade.
Este prédio já foi o Palácio Galvão Mexia
Ficaram os alicerces da antiga construção
As paredes contam a história de cada dia
A quem as souber escutar com atenção.
Depois é o ruído da água em surdina
Na fonte onde o garoto vende jornais
Descalço e de barrete chega à esquina
Duma vida feita de horas sempre iguais.

José do Carmo Francisco
In: Poemas de Lisboa e Borda de Água, Lisboa: Apenas Livros, 2014, p.59

15.2.16

A caligrafia do silêncio

E. O. Hoppe


Ando pelas ruas desta incerta cidade.
Deixo que o meu olhar
se ajuste ao olhar dos outros.
Entre ruas e rostos há fragmentos de solidão
que denunciam a trágica expressão da vida.
Todos conhecem a oralidade da mudez,
a vigília da revolta, a senha do desdém,
a estranheza de golpes imolando os sonhos.
Eu, com uma fala colada na língua,
somente  me consinto
a áspera caligrafia do silêncio.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

8.2.16

Um pássaro alucinado

Ana Pires

Quando em minhas mãos dança
a nudez de um rosto,
há um pássaro alucinado
que voa de costa a costa
até encontrar um búzio verde
para se aninhar
e aí desfalecer de paixão.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

1.2.16

Em seara alheia


Junto ao muro
do nosso quintal cresciam junquilhos. As galinhas
subiam as escadas da varanda e catavam caruncho
e formigas. Uma nespereira à beira do poço olhava
as águas paradas no fundo do tempo. Os
pessegueiros eram tão delicados

que bastava soprar para que os pêssegos nos
caíssem nas mãos. As galinhas eram livres até
serem degoladas ao domingo antes da missa. E o
milagre das manhãs era a luz clara dos junquilhos

o ardor dos pêssegos na palma das mãos, a água
fresca do poço. Talvez por serem assim delicados
há muito que os pessegueiros morreram. Mas a
nespereira era eterna

e também já não existe.

Quando alguém mandou tapar a boca do poço já as
galinhas tinham perdido a liberdade.  Aparecem
agora depenadas embrulhadas em película nas
prateleiras do hipermercado

do outro lado do quintal.

A nossa casa caiu para dentro de si própria. À beira
da estrada de alcatrão entre telhas e barrotes ainda
crescem junquilhos. Não deve tardar de certeza um
qualquer decreto

a corrigir tão ostensivo anacronismo. O céu anda
baixo e o tempo não está para bucólicas poesias: há
muito que nos abandonaram os deuses às ímpias
sombras.

Rui Miguel Fragas
In: Não sei se o vento. Macedo de Cavaleiros: Poética, 2015, p.14