25.1.16

Os números

Andy Warhol

Aprendi a dizer os números
quando era criança.
Como toda a gente.
Contava tudo: as pedras, os barcos,
os frutos, os degraus,
os pássaros, as pessoas.
Contava pelos dedos.
Do princípio ao fim.
Do fim para o princípio.
Mas, desde sempre, preferi
os números ímpares:
únicos, solitários, caprichosos.
Não, não é superstição.
Fascina-me aquela exactidão assimétrica
a corromper a ordem dupla.
Como se ficasse assim anulado
o intuito de atingir uma forma definitiva.
“Os números ímpares agradam
aos deuses”, terá dito virgílio.
Tão oculto, o valor simbólico da razão!

Graça Pires

De Uma claridade que cega, 2015

18.1.16

Recordo as mãos da minha mãe



Pode parecer absurdo
este cantar de dor a meia voz,
este cantar de amor em grito mudo. 
Recordo as mãos da minha mãe: o sabor
do pão quente, do leite, do mel;
as memórias, a coragem, o amor;
uma canção de embalar
que em luz se transfigura, 
e se faz puro afago no meu peito.

Sei agora que a terra é menos árida
nos lugares onde as mulheres
não morrem por terem as mãos
presas à pele dos filhos.

Graça Pires, 2016

11.1.16

Em seara alheia


As asas

Ícaro falou-me da urgência do vôo
da construção das asas
e do salto.
Falou-me da visão
do ar
e fez-me acreditar no invisível.

As asas estão prontas
à espera do momento da
ruptura.

Samuel Pimenta
In: Ágora. Livros de Ontem, 2015, p. 33

3.1.16

Um recomeço

Turner

Hesitantes, as palavras
procuram um ponto de partida,
um recomeço.
Manejo a corda de amarrar
as dobras do tempo
diluindo os nós de sangue
no recuo dos lábios.
Quero descobrir, num vinco de texto,
a caligrafia ajustada ao barro
que molda um favo de puríssima luz
só visível em gramáticas de espanto.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015