30.7.14

Viagem

Pier Toffoletti


Sigo os teus passos, caminheiro 
perdido em cidades sombrias. 
Não sei manejar as estacas 
com que te inclinas no abrigo dos alpendres. 
Mas todos os caminhos me desafiam para o desvario 
de um lugar, de uma palavra, de um rosto. 
Como se a linha da vida me cartografasse o olhar.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

23.7.14

Nada temos para dizer

Federica Erra

Nada temos para dizer quando lembramos
os cântaros da sede, a boca alagada
e o corpo aberto à humidade dos trevos.
Calamo-nos então para não ferirmos
a água represada no olhar.
Os lábios gretando na fenda da secura.

Graça Pires
De O Silêncio: lugar habitado, 2009

16.7.14

Em seara alheia



Os que falam das aves são discretos.
Delas dizem a permanência branca
Acima da corrupção das vozes.

A palavra ave torna-se som.

Falam as aves, mudas, com seus gestos
Dos que falam delas e, falando, voam.

À semelhança dessas aves, voam,
Lendo os sinais do tempo que lhes cabe.
A ele sujeitos, se vão libertando
E por aí avançam como aves.

Rui Almeida
In: Temor único imenso. Fafe: Labirinto, 2014, p. 29

10.7.14

Dança

Degas


Contavam-me quando era menina 
que, em noites de lua cheia, havia mulheres nuas 
junto às fontes dançando ao ritmo da vertigem 
das suas ancas, até de madrugada. 
Calavam-se os pássaros e o vento. 
Convocavam-se lobisomens e cães negros. 
E dizia-se que eram bruxas. 
Nunca as vi. Mas sonhei ser uma delas muitas vezes.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

3.7.14

Casa

Dorothea Lange

Antes da casa havia o teu olhar 
e a rega exasperada das rosas 
a desaguar imensa em minha boca. 
Houve dias e dias em que se tornou urgente 
um ponto de fuga pela noite dentro, 
não fosse a alvorada deixar de ser
uma ave liberta em nosso peito. 
Depois, ninguém sabe de onde veio o fascínio 
que nos colou a este chão.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013