27.4.14

Pressentimos o abismo

Pier Toffoletti

Se acreditamos que um istmo 
viola a intimidade da ilha, 
é porque pressentimos o abismo 
ou o embuste de um drama, 
de uma suspeita, de imagens 
desfocadas pelo ódio. 
É porque sabemos que o pão, 
levedado pela fome, 
deixa intacta a miséria
e a tristeza na boca das manhãs.

Graça pires
De Ortografia do olhar, 1996

22.4.14

Em seara alheia



Não é ainda a luz de abril

Não.
Não é ainda a luz de abril
que alastra neste chão.
É apenas um sorriso, 
um breve rumor a roçar
o veludo das ervas.

Ainda não se ouve, ao longe,
a canção do milho sobre os campos,
a sua gloriosa subida às mesas,
nas casas.
Ainda não se ouve nada.

Por agora falo-te da sombra
que sobra deste inverno,
da sombra que se cola à terra nua
E se demora no sono enrolado
dos gatos.

Ficarei por aqui. Aceito ficar
com as mãos magoadas
e o delírio da febre nos olhos
enxotando palavras de vento no escuro.

O sorriso?
Ah!... O sorriso entornou-o aqui a seda
de uma rosa.
Abriu-se, pura, à proa de uma súbita
primavera.

Lídia Borges
In: Sementes Daqui. Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2013, p. 70

15.4.14

Sombra

Nelson Gandra



Vem, senhora das trevas 
trazer-nos os contornos da luz 
nos sulcos da noite 
para que a extrema alvura dos gladíolos
ponha em nossas mãos aquele brilho, 
quase divino, que só as sombras guardam 
na vertical alteração de cada hora.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

8.4.14

Os velhos


Alfredo Cunha


Não é simples envelhecer.
Já um poeta o disse.
Peregrinos do tempo,
aprenderam, pelo olhar,
o caminho do trigo maduro,
o perfil dos navios
que partem sem regresso,
a mudança das estações do ano,
a curta duração das emoções.
Mas, quem se lembra da fadiga
dos seus braços, agora,
que é outono em suas mãos?
Quem fez do banco do jardim
um referente da morte,
o lugar onde a sua solidão se acoita?
Quem esqueceu, nas suas rugas,
a sábia maturidade da vida,
ou antes, um modo diverso
de olhar na direcção da noite?

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

1.4.14

Em seara alheia




APANHADOR DE ESTRELAS
1º Prémio APPACDM Setúbal – 2013

Estavas sentado a apanhar estrelas no beiral da casa
e eu,
que queria escrever um poema,
um poema luz
franco e aberto,
um poema a sorrir, a gargalhar
escrevi-te a ti,
a ti porque és parte da poesia que há em mim
Já viste, repara:
ninguém sabe apanhar estrelas no beiral de casa
muita gente tenta
mas as estrelas caem e partem-se na noite
mas tu,
tu fazes das tuas mãos: gestos
onde estrelas vão morar
tu sabes
sabes apanhar estrelas no beiral da casa
e é esta diferença de quem sabe apanhar estrelas nos beirais
que torna feliz e matinal
o olhar de todos os poetas.

Olívia Santos
In: TUDO. Lisboa: Lua de Marfim, 2014, p. 5