24.2.13

Lentamente



Lentamente.
Como se fossem intermináveis os dias e as luas.
Como se o sedentarismo dos antigos nos habitasse.
Como se cavássemos no coração
o milagre das manhãs.
Como se a terra fosse um espelho
de água ou um coração solar.
Lentamente. Muito lentamente.
Porque basta a urgência de um grito
sem contornos para que a pétala mais ilesa
se corrompa, para sempre, em jardins moribundos.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

17.2.13

O excesso de luar




A lua abriu um sulco no telhado
e uma estranha névoa cobriu todas as casas.
As aves marinhas alteraram seu rumo.
Algumas mulheres atiraram-se ao mar
e seguiram as embarcações
até se transformarem em gaivotas.
Houve homens que enlouqueceram
com o excesso de luar e acorrentaram os filhos
com medo de os perderem.
Os vasos da varanda alagaram-se de vento
 e os gerânios vermelhos secaram.
As crianças esconderam-se
por trás dos espelhos para não verem
o rosto fascinante da morte.

Graça Pires

De A incidência da luz, 2011

10.2.13

O grito dos cumes



Quero guardar no interior das mãos
a esquiva cintilância das manhãs inadiadas.
Quero palavras com punhais de raiva
a ferir o grito dos cumes,
a riscar o ventre da neve com minuciosas unhas.
E viro do avesso o manto do olhar
para chegar à Montanha Mágica
quando Hans Castorp fazia um esforço
para ver e deparava com o nada,
o remoinho branco do nada.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

1.2.13

Escrevemos mar


Ana Pires

Escrevemos mar como se fosse a palavra
única que nos circunda a fala.
Quando éramos crianças tínhamos os barcos de papel.
E havia traineiras em que os pescadores manchados
de sal e sangue enfrentavam a tormenta de cada dia.
Agora, de quilha inquieta, os navios ferem
as entranhas da água e cingem-nos no olhar
o negro das marés e dos limos
que morrem na praia, onda após onda,
num extenuado adeus ao apelo dos corais.

Graça Pires
De: Uma vara de medir o sol, 2012