22.11.11

A que país pertenço?

Robert Coombs

Acordo nos degraus de novembro
e volto a ser menina.
É o dia dos meus anos.
Ponho um vestido cor de rosa
e um laço de cetim a prender as tranças.
Tenho uma boneca de papelão
com covinhas no nariz.
Há arroz doce para o lanche,
com o meu nome desenhado a canela.
Mas já não sei o caminho
para o sótão da memória.
Ando devagar pelo pátio
das recordações. A que país pertenço?
Já não choro uma pátria de bandeiras,
nem rastejo os vocábulos
pelo subterrâneo das traições.
Tenho uma lança de pedra
no contorno da cintura
para chegar ao âmago do medo
e saber como é inevitável
um jogo de luzes nos olhos da noite.
Sobre o meu peito aberto, as aves
bebem nuvens num contorno de fábulas.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

14.11.11

Memórias de Dulcineia XXII

Trémula, ajusto à mão
a posse das palavras
e conto:
Numa aldeia da Mancha
um homem recuperou a razão
e começou a morrer.
Banido de seus sonhos,
as sombras da tristeza
devolveram-lhe o nome
e o rosto que eram dele.
Aos poucos, o seu corpo
tornou-se circular
e fundiu-se com as velas brancas
de um moinho de vento,
que continua a girar
numa aldeia da Mancha,
de cujo nome não me lembro.

Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

7.11.11

Em tons de azul

Matisse

Recolho-me no interior azulado
das imagens que atravessaram os teus olhos.
Podem ser as figuras femininas de Matisse
em recortes de guache.
Pode ser o ramo de miosótis
que ajeitei na jarra pela manhã.
Pode ser o filme de Kieslowski
celebrando a liberdade da vida.
Pode ser um pássaro, uma pedra,
um papel, uma blusa.
Pode ser esta luz, quase um rio,
tão frágil em meus olhos, quando as palavras
ardem como chagas de fogo na lembrança.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011