29.12.11

Regressamos aos lugares da infância

Dorothea Lange

Mais do que uma voz, a vibração de um trompete
exila o pranto inesperado do olhar preso
à curva do sol nascente.
Regressamos em sobressalto aos lugares da infância.
Colhemos azedas roçando nos lábios o suco
que a língua suga com um prazer inexplicável,
iludindo em nossas bocas outros sabores.
Temos ao alcance das mãos o arco matinal do riso
e vivemos em litorais que nos douram o corpo,
poroso a todas as paixões.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

19.12.11

A estrela de Natal


Foi um sonho que tive:
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.

Miguel Torga
In: Diário I

Um Natal com Amor e Luz e um Ano de 2012 com Saúde e Paz.

9.12.11

Amo as açucenas


Amo as açucenas na branquíssima
vertigem do princípio do mundo.
Ninguém pode amá-las assim
nas madrugadas de linho e de nácar.
Ninguém subiu as vertentes da colina
mais íngreme com um vestido de noiva
amarrado ao corpo.
O abandono recortado no ar.
Os desejos entorpecidos na alvura dos seios.
Os guizos das cabras reclamando o cio.
A cera das colmeias na greta dos lábios.
O fascínio da luz a incidir nas hastes mais altas.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

1.12.11

Aloés



De dezembro a fevereiro os aloés
florescem à beira das estradas.
Têm hastes longas presas aos cactos.
Cleópatra, dizem, utilizava-os para dar à pele
a beleza macia que entontecia os homens.
É por isso que nos fascina a sua cor
fortemente igual às laranjas antigas.
É por isso que há mulheres rendidas
aos poderes dos bálsamos obtidos das flores.
É por isso que se acredita na minuciosa
utilidade de lhes extrair o sumo,
o tónico, o gel e tantas outras coisas
que prometem a juventude eterna.
Como se não fossem perversos
os desígnios da morte.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

22.11.11

A que país pertenço?

Robert Coombs

Acordo nos degraus de novembro
e volto a ser menina.
É o dia dos meus anos.
Ponho um vestido cor de rosa
e um laço de cetim a prender as tranças.
Tenho uma boneca de papelão
com covinhas no nariz.
Há arroz doce para o lanche,
com o meu nome desenhado a canela.
Mas já não sei o caminho
para o sótão da memória.
Ando devagar pelo pátio
das recordações. A que país pertenço?
Já não choro uma pátria de bandeiras,
nem rastejo os vocábulos
pelo subterrâneo das traições.
Tenho uma lança de pedra
no contorno da cintura
para chegar ao âmago do medo
e saber como é inevitável
um jogo de luzes nos olhos da noite.
Sobre o meu peito aberto, as aves
bebem nuvens num contorno de fábulas.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

14.11.11

Memórias de Dulcineia XXII

Trémula, ajusto à mão
a posse das palavras
e conto:
Numa aldeia da Mancha
um homem recuperou a razão
e começou a morrer.
Banido de seus sonhos,
as sombras da tristeza
devolveram-lhe o nome
e o rosto que eram dele.
Aos poucos, o seu corpo
tornou-se circular
e fundiu-se com as velas brancas
de um moinho de vento,
que continua a girar
numa aldeia da Mancha,
de cujo nome não me lembro.

Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

7.11.11

Em tons de azul

Matisse

Recolho-me no interior azulado
das imagens que atravessaram os teus olhos.
Podem ser as figuras femininas de Matisse
em recortes de guache.
Pode ser o ramo de miosótis
que ajeitei na jarra pela manhã.
Pode ser o filme de Kieslowski
celebrando a liberdade da vida.
Pode ser um pássaro, uma pedra,
um papel, uma blusa.
Pode ser esta luz, quase um rio,
tão frágil em meus olhos, quando as palavras
ardem como chagas de fogo na lembrança.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

31.10.11

Nas noites excessivas

Ana Pires

Para poderem atenuar a cruel inclinação
das sombras nos alpendres, quando os pátios
virados a sul manobram a direcção dos ventos,
elas partem os vidros de todas as janelas,
como se soubessem o caminho da morte
nas noites excessivas.
E abrem os olhos à lâmina da cegueira
para que os espelhos atravessem a nitidez
da voz enrouquecida de tanta mudez.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

21.10.11

A febre das uvas a morder-nos a língua


Dos montes inclinados à sedução das vinhas
apenas sabemos a linguagem das brisas
e o voo absolutamente breve dos insectos.
Ninguém suspeita que a inevitabilidade do sol
é um aviso à transparência dos frutos:
a febre das uvas a morder-nos a língua.

As mulheres com gestos fatigados
desenham nos lençóis a crueldade
de certos sonhos tão sobressaltados
como o choro incessante dos filhos.
Suas vozes sufocando na nitidez da noite.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

14.10.11

O outono que nos coube

Dorothea Lange


Deixo que um veludo roxo
me toque as sobrancelhas
devagar, para descobrir
uma terra sem nome,
onde repito vezes sem conta
a noite perturbante em que soube
pela primeira vez que as lágrimas
dos velhos são cristais de quebranto,
lapidados na secura da garganta.
Se não fosse este país de medos,
estaria intacto o sossego dos mortos.
É preciso transformar o desalento
em cavalos à solta, neste destino
de outono que nos coube.
Tudo raso de esquecimento.
Tudo distante de amor.
Memória da lenha e do fumo
por dentro do lume.
Uma espécie de fogo posto
ondula nos meus braços
Não hesito em arrombar todos os gestos
e suspender a tristeza, na cadência da noite.
Não falo. É outono: lugar calado.
Espero só a explosão das novas cores do vento
dentro das minhas mãos, para romper o nevoeiro
de todas as paisagens líquidas.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

7.10.11

Cor negra

Edouard Manet

Manet cultivou a paixão pela cor negra
e com ela pintou os casacos dos homens
e adornou o pescoço das mulheres.
Como se aprisionasse o tumulto das cores
na intimidade da tela.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

30.9.11

Tango

Pedro Alvarez


Coloco sobre o corpo um vestido vermelho
com peitilho de renda e digo tango.
O duelo das pernas: corças descomandadas
no ventre das chamas.
Repito tango.
O bandoneón de Astor Piazzola deixando na carne,
em desalinho, os gemidos da posse.
Ai, os lençóis do estio no suor da febre!
Ai, o mastro mais alto exasperando as águas!
Volto a dizer tango como quem esgota
o vinho novo na euforia da sede.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

23.9.11

Outono

Ana Pires

Alheia à continuidade das manhãs
fixo um encontro comigo
para a hora em que a terra se deixa amar sem cólera.
Tudo converge no sombreado das árvores
chorando as folhas.
Sento-me na esplanada dos prodígios
e abro um bloco pautado
para fixar a voz daqueles que ninguém ouve.
Ao mesmo tempo, apanho do chão
as memórias desta cidade
onde todos os sinais de vida
se conjugam com o verbo esperar
e todos os odores são uma mistura de fumo,
de fadiga, de suor e de solidão.
Tudo se passa, simultaneamente,
como uma despedida e um reencontro.


Graça Pires
De Outono:lugar frágil,1994

16.9.11

Ortografia do olhar

Salvador Dali

Os barcos aproximam-se do quotidiano,
pelos atalhos da luz, no corpo da tarde.
Ao mesmo tempo, de cidade em cidade,
uma inquietante treva incendeia, noite adentro,
o ruído mitológico das maresias de outono.
Um navegante sem bússola

enforca-se no cais dos percursos para sul,
como se rastejasse a paisagem dos sonhos,
pelo lado mais escarpado da alma.
Ritual de sangue inadiável.
Rotas afogadas nas pálpebras.
Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices,
reassumindo não sei que espanto,
enconchando o coração para nele caber
o estremecimento intacto de um rio.
A brisa, de feição, justificará o lentíssimo
tumulto dos remos junto à foz.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

Minhas Amigas e meus Amigos, faz hoje 5 anos que iniciei o meu blogue "Ortografia do olhar" exactamente assim: com esta imagem e este poema. Fiz muitas amizades e a todos agradeço o carinho que me demonstraram.
Não vou fechar o blogue. Continuarei a publicar os poemas, mas por falta de tempo fecharei a caixa de comentários, pois não acho justo não poder responder às vossas agradáveis mensagens. Espero que continuem a ser meus leitores e meus amigos. Se eu puder ser útil a alguém o meu endereço electrónico é o seguinte:
gracampires@hotmail.com

8.9.11

Em seara alheia





no princípio, somos esta luz queimada de água a água,


o fogo ininterrupto que se alastra na comunhão das margens,
a maré vazia, a mágoa calcinada, a imagem breve da castidade,
trabalhada pela pluma do céu com seu botão de rosa sobre o mar.
no princípio , estamos sóbrios, ignoramos o abismo caminhamos nus,
e se uma música nos toca, encostamos toda a nossa vida um ao outro,
e a luz faz, no chão onde dançamos, as efémeras sombras de uma chama,
que, de hoje para sempre, arderá no mundo à nossa passagem. e temos à
nossa espera, no fim de tudo isto, o medo com os nossos olhos na cara, e,
entre eles, a mesma água que queimou este poema, mas abaixo os braços leves,
convidativos, apetece cair nestes braços e concluir, num só corpo o verbo amar.

Alice Macedo Campos
In: a mulher sus.pensa. Porto. edita-Me,  2011

31.8.11

Ainda assim


As abelhas coladas à cal dos muros
pela violência da luz
tornam impossível a essência das colmeias.
Ainda assim as mulheres
lambem os favos
que enchem de prodígios suas bocas.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

24.8.11

Um espesso pó nos aguarda

Walker Evans

Um espesso pó nos aguarda.
Por isso transformamos a ombreira
da porta num braço de mar.
O soalho de madeira faz da casa um navio
onde as ondas iludem a errância do casco
e a geometria das tábuas repete
a simétrica dimensão dos mastros.
Um remo parado significa uma espera
ou a irremediável secura do olhar.
É então que percorremos a casa
e trancamos as portas para que o vento
não seque os olhos alagados
com que regamos o jardim.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

17.8.11

Qualquer gesto

Munch

Era quase a manhã a sangrar nos pulsos.
Qualquer gesto seria inútil para entoar
todos os silêncios que enchem a noite.
Eu podia esperar à beira-mar o amanhecer
ou os amigos a quem a errância dos mastros
rodeia a garganta.
Podia adormecer sob as águas onde se escondem
as quilhas seduzidas pela voragem.
Podia, eu sei, abraçar os navios
ou ser a asa e o voo das aves solitárias.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

4.8.11

Em seara alheia


Hoje é o tempo
do renascer vigoroso de deusas primordiais
que dão à paisagem
formas tecidas de folhas
é o tempo
do sol sorrir na transparência da água
ou deitar-se manso
sobre ondulantes lençóis verdes
até adormecer no crepúsculo é o tempo
de sentir o brando acordar da brisa
do sereno canto dobrado das aves
que atravessam o eterno espaço
e de gravar na retina o dócil bailado das mariposas
é o tempo
das palavras florirem mágicas
nas sílabas silenciosas da inspiração
para se oferecerem à poesia
hoje é o tempo
de respirar beber e saborear a essência
na existência do segredo da vida

Teresa Gonçalves

In: Pleno verbo. S. Mamede de Infesta: Edium, 2011

25.7.11

Memórias de Dulcineia XXI

Andrew Wyeth

Era lentura o que me cobria
os olhos quando, ao longo
do meu corpo, te ausentaste.
Um vagaroso luto cercou
todos os nomes que te dei.
É de cinza o meu peito.
É de fumo o teu rosto.

Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

15.7.11

A cor cinza

    De A Incidência da luz, 2011

29.6.11

Quando chegaste

Alvarez Bravo

Como se nada pudesse alterar o percurso de uma paixão,
enfeito os ombros de mimosas e mudo de perfume, para
inquietar quem roce os meus cabelos.

Chegaste: trazias nos olhos toda a claridade 
das manhãs da tua infância
e um sorriso de menino triste no contorno da boca.
Chegaste: o meu olhar propício ao teu olhar. 
A marca da sede nos meus lábios. 
Um frio perturbado, coagulando-me o sangue e o sexo.
Chegaste: lembras-te como, em nossas mãos, 
se insinuou um rio e, sem tréguas, os dedos 
deslizaram, lentamente, adivinhando
o começo da nascente em nossos corpos ?

Graça Pires
De Reino da lua, 2002


ATENÇÃO: Há blogues onde não consigo deixar comentários porque não aceitam a conta do Google. Na selecção do perfil falta o item Nome/URL. Não sei se é possível a correcção. Obrigada. G.P.

22.6.11

Em seara alheia


DOEM BRINQUEDOS NAS VEIAS

Por trás da idade nasce a infância,
os brinquedos enferrujados nas veias doem.
As aves que levantam do coração,
adivinham o tempo escasso.
Trazem nos bicos delírios
que pousam no lodo corporal.

Correm crianças no estuário das mãos.
Mergulham nos dedos
e quando o crepúsculo chega
secam-se às impressões digitais.
Levam nas pálpebras castelos de areia.
Só mais tarde,
quando a idade lhes crava a lua na boca
conhecem a calvície dos dias.

Desarrumados na insónia
sentam-se a espiar a infância.
Sonham uma candura nómada
que lhes adormeça a velhice.

Alberto Pereia

In: Amanhecem nas rugas precípicios. S. Mamede de Infesta: Edium, 2011

15.6.11

Junho é o teu mês, filho






No início da
primavera vou encher-te o jardim de amores-perfeitos.

Assim falou meu filho quando janeiro findava.
Eu guardei junto ao coração estas palavras e pensei:
vão finalmente as rosas púrpuras
incendiar o próximo verão?

Graça Pires
De: A incidência da luz, 2011

3.6.11

Há máscaras de lama

                                                                  István Kerekes

Há máscaras de lama cobrindo a astúcia
no focinho das feras sem sono.
Há a ferrugem inflexível dos martelos
na ira dos deuses distantes dos homens.
Há o ostracismo que se vislumbra
nos muros da cidade
onde a ácida solidão das letras
exprime e trai gestos de raiva
queimando os dedos.
A tinta escorre pelas paredes
como se fosse sangue seco
a corroer um percurso de medo
que nenhuma fuga altera.
Depois só resta a sujidade cicatrizada
no tédio de quem passa.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011


ATENÇÃO: Há blogues onde não consigo deixar comentários porque não aceitam a conta do Google. Na selecção do perfil falta o item Nome/URL. Não sei se é possível a correcção. Obrigada. G.P.

27.5.11

Lentíssimo sonho

Manuel Fazenda Lourenço


As flores da macieira ocultam as abelhas
em seu minucioso trabalho.
Espesso é o pólen que a luz da manhã
derrama sobre a terra: lentíssimo sonho
de um pomar antigo.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

20.5.11

Vou no barco de Conrad

Hiroshi Yamazaki

A indiferença das molduras fende,
em minha boca, o asfalto dos dias
e o feixe dos gritos dilatados na garganta.
Um veludo negro atado nos pulsos
lembra-me que o mar não se vê na escuridão.
Por isso vou no barco de Conrad
ao Coração das Trevas na demanda
iniciática das ilhas naufragadas.
Ouço com assombro o narrador.
E sobre o chão da página
me debruço e me procuro.
Um sulco salgado na ponta dos dedos
toca harpas de lodo em minha voz.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

13.5.11

Em seara alheia



POR VEZES


Por vezes tudo se confunde. As minhas mãos
são sol dentro das tuas e há cintilações nos campos
do Outono onde se guardam nuvens e esmeraldas.
Por vezes tudo se transforma. O céu cansado
mergulha na película dos lagos e adormece
em sono leve rente aos limos e às memórias.
Há um rumor de passos de ninguém e um lamento
de aves sem canto nem asilo. Há um fim de tarde
suspenso nas ramagens das árvores do Verão.
Por vezes sou o Verão a suportar a casa.
Por vezes sou a casa e acolho a sombra.
Por vezes tudo se confunde e sou a sombra.
Por vezes.

Licínia Quitério 
In: Poemas do Tempo Breve, 2011

7.5.11

Maio é o teu mês, filha

Maio é o teu mês, filha.
Teu e das cerejas vermelhas.
Cresceste com o assombro
dos cravos entrelaçados no sonho.
Por isso é de fogo a sede dos teus olhos.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

29.4.11

Emudecemos

Dorothea Lange

Emudecemos com a noite calada entre os olhos.
Ao alcance dos espelhos colocamos a luz coada
das janelas para que os filhos não busquem
em vão o rosto da palavra, a primeira,
que lhes quebrou os dentes
quando a inocência em plena boca se desfez.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009