29.9.10

Em seara alheia

Sentaram-se na areia e descalçaram os sapatos.
Puseram-se a contar pelos dedos os barcos
que faltariam para chegar o verão.

Nenhum deles falava. Tinham passado juntos
algumas noites, num quarto sem vista. E, embora
julgassem o contrário, não conheciam um do outro
muito mais do que isso.

Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.

No verão
alguém viria forçosamente buscá-los.

Maria do Rosário Pedreira
In: A casa e o cheiro dos livros. Lisboa: Quetzal, 1996

22.9.10

Sou habitante da cidade

Gérard Castello Lopes



Sou habitante da cidade, como os pombos
que esvoaçam a esperança de lés a lés.
Sou habitante da cidade,
como todos os sobreviventes
do cansaço ritmado dos horários.
As ruas esvaziam-se.
Um som sufocado de baladas protege
os culpados das ruínas do outono.
Em vão me iludo
com a claridade da cidade desperta.
Ninguém chora a noite
depois da passagem dos barcos
pelo olhar das pessoas desprevenidas.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

15.9.10

Faço do pensamento a muralha de um cais

Monet


Sempre foram fortuitas as palavras
na génese da utopia. Eu sei.
O exílio existe num quarto vazio de abraços,
quando a agonia pernoita
no interior aguado dos olhos.
Faço do pensamento a muralha de um cais.
Nos teus dedos vejo um mar
com um barco em primeiro plano.
O teu corpo, húmido aviso dos meus sentidos,
tece cumplicidades na minha língua.
Os nossos movimentos equivalem-se:
Ondulação lasciva. Labirinto de búzios.
Agasalho secreto.
Os teus olhos atónitos com o júbilo dos meus.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

9.9.10

Memórias de Dulcineia XIX

Ana Pires


Morreste sem alarido.
De que morte?
me pergunto.
Descentrado no tempo,
rasgavas o silêncio
dos caminhos que te perseguiam.
A via-láctea, entretecendo
teu delírio, nunca me devolveu
a forma imprecisa do teu vulto.
Inclino o rosto
para a luz dispersa da lua
e vejo o teu nome
nas pupilas das aves nocturnas.
Deixo, então, que soltem tuas cinzas
na mancha desta página,
onde ainda ressoam os teus passos.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

1.9.10

À procura das fontes


Manuel Fazenda Lourenço



Ela abria as mãos sobre as pedras e ouvia
o som da água na margem das encostas.
Conhecia o voo dos pássaros aninhados
na trepadeira da latada e o reflexo da luz
escondida na chuva das manhãs.
Lavrara o campo, eito a eito,
com o corpo aguçado de paixão.
Um dia, ao acordar, sentiu que as nascentes
lhe mirravam no rosto.
Por toda a parte as fendas da sede sulcavam o chão.
Nunca mais foi vista.
Enlouquecida anda de terra em terra
à procura das fontes,
com um punhado de lama enrolado em cada pulso.


Graça Pires
De Saudade: revista de poesia, nº 12, Jun 2010. Organ. de Amadeu Baptista