25.3.10

Memórias de Dulcineia XVIII

Gustave Dore

A notícia se espalhava:
um cavaleiro andante
em doida cavalgada pelo vento,
ridículo, intruso de si mesmo.
A notícia corria de boca em boca:
um herói de batalhas não travadas,
excluído da sorte.
A notícia vinha e voltava com os pássaros.
Da notícia falavam.
Todos. Sempre.
Como quem ri da própria tristeza.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

18.3.10

Tão cúmplices, as palavras


Edward Hopper
Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.



Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

11.3.10

Em seara alheia


Devia olhar o rei
Mas foi o escravo que chegou
Para me semear o corpo de erva rasteira

Devia sentar-me na cadeira ao lado do rei
Mas foi no chão que deixei a marca do meu corpo

Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo

O escravo era novo
Tinha um corpo perfeito
As mãos feitas para a taça dos meus seios

Devia olhar o rei
Mas baixei a cabeça
Doce terna
Diante do escravo.

Paula Tavares
In: Manual para amantes desesperados. Lisboa: Caminho, 2007

4.3.10

O buscador de pérolas


Era um buscador de pérolas.
Atravessou a mais densa escuridão
para abrigar na expressão do rosto
uma luz absoluta. Ficou cego.
Agora há uma ferocidade
suspensa nos seus olhos.
E dorme pelas praias
onde só as mulheres
vestidas de negro
escutam o grito das areias.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009