24.10.09

Todos os sinais do rosto

Dorothea Lange
Pelo vértice dos abismos
posso espreitar o fulgor inventado
da sombra que me precede.
Todos os sinais do rosto
se tornam tão palpáveis
como a paisagem dos dias,
em que a luz, trémula,
junto à fronte me deixou,
no fundo do olhar, para sempre,
uma ilha cercada por sombras,
tão cheias de orfandade,
que só um milagre me salvou
de uma solidão definitiva.

Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

17.10.09

Outono: lugar frágil

Edouard Boubat


Acendo as mãos para aquecer o olhar
de quem atravessa apressadamente o outono.
Um morno ruído desdobra o voo quebrado
dos plátanos obstruindo um caminho
desenhado a carvão por onde passeio
à beira dos acontecimentos e das sílabas,
alheia a tudo, como se pudesse passar
o resto da vida à sombra do pólen das palavras
e adormecer no confluir da transparência
e da luz, neste outono: lugar frágil.


Graça PiresDe Outono: lugar frágil, 1993

7.10.09

Em seara alheia



Fábula da Fábula

Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E, realmente…
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.

Miguel Torga
In: Diário VIII, 1956

1.10.09

Por meio do fascínio



Os deuses reuniam-se de noite.
Debruçavam-se sobre os bosques
para sacralizar as árvores,
debaixo das quais os tocadores de lira
encantavam as serpentes
e os amantes justapunham os corpos.
Zeus exibia, então, a sua força mágica
aniquilando os homens por meio do fascínio.


Graça Pires
De Labirintos, 1997