23.2.09

Memórias de Dulcineia XIII

Menez

Sem medo do perfil
em que me invento
procuro os ângulos
menos sombrios
do passado.
Viro os gestos do avesso.
Deturpo conceitos e preconceitos.
Esqueço os comportamentos comuns.
Imagino-me num castelo longínquo,
cativa e princesa.
Não quero adiar o destino
de me rever nos sonhos
que te chamaram de tão longe.
Eu, aqui, morrendo aos poucos,
sitiada do teu nome.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

17.2.09

Perto do meu corpo

D'Angelo

Conheço um rio sem destino,
confluência de mágoas e de sonhos,
onde os barcos navegam para o sul.

Perto do meu corpo nada é interdito,
a não ser um súbito verão
prolongado nas franjas da memória.

Amanhece na espessura dos desejos,
como se a madrugada descrevesse
a violência, em rotação azul,
ou crescessem papoilas nos olhos de quem ama.


Graça Pires
De Poemas, 1990

13.2.09

Para atravessar a noite

David Gray
Percorro, passo a passo,
os sulcos dos migradores
de sonhos.
Reaprendo o ritual
dos presságios
para atravessar a noite,
deslumbrada e breve.
Posso, assim, iludir os gestos
mais suspeitos e escutar
o silêncio e as palavras
mutuamente se inquirindo.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

9.2.09

A primeira palavra

André Durand
Sob o domínio de Minos,
habitei o fortificado castelo de Knossos,
onde as mulheres alternavam, em si próprias,
as múltiplas formas dos deuses
e honravam, com o corpo,
o seu compromisso com o cosmos.
Hoje sei que nunca se repetirá a intacta perfeição
da primeira palavra com que nomeei a vida.

Graça Pires
De Labirintos, 1997

6.2.09

Em seara alheia



NATUREZA QUASE


Eram mulheres à volta duma mesa.
Teciam conversas com linhas da voz.
Os olhos desviavam insectos verdes
a zumbirem memórias de outras mesas.
Deitavam cartas a convocar futuros.
No fruteiro, a natureza quase morta.
No retrato tinham pupilas vermelhas -
Como as feras no escuro.

Licínia Quitério
aqui

In: De pé sobre o silêncio. 2008

2.2.09

Nocturno

Magritte

À noite vou por aí,
ociosamente.
Percorro um ritual lilás
feito de violetas de pedra
e traço cada pausa
no retorno da lua inicial.
Aqui a memória é lenta
como as angústias.
Muitas vezes vejo árvores
com frutos azuis,
ou animais em nudez perfeita
respirando o vento.
A escuridão é o subterfúgio
inesperado do coração
quando o olhar aquece
e o orvalho é de cetim.
Há máscaras de búzios e limos
na cara de quem passa.
Nas suas vozes ouço o itinerário
das manhãs siderais
e nasce nos meus passos
o rumo da via láctea.
Ninguém me conhece.
Venho do arco-íris
e trago nos dedos
o ângulo transparente da noite.

Graça Pires
De Poemas, 1990