30.11.08

Em seara alheia



UM POEMA

Não tenhas medo, ouve:
É um poema.
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...


Miguel Torga
In: Diário XIII. Coimbra, 1983

26.11.08

O lugar interior

Mark Rothko

Queria descrever, ao pormenor,
o lugar interior onde o poema recomeça
o seu esboço de contornos invisíveis,
rodeando os pulsos.
A língua, distorcida pelo súbito tumulto
da água, engolindo a sede,
agrafa de gritos minha boca.
As letras enrolam-se-me na saliva,
como um choro, que torna sombrias
todas as definições de paixão.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

22.11.08

A casa


A minha irmã a trouxe: a foto da casa onde nasci,
como se fora uma gaivota de névoa.
Agora, a casa respira a meias com o longe
que nos separa da infância. As suas raízes
sobrevoam, tão cúmplices, tão subtis,
os nossos corações atordoados de menina.
Do fundo da tarde adivinhamos, sei lá,
o sótão pintado de pretéritas inocências,
a janelinha por onde as bolas de sabão
nos levavam, em estado de sonho,
por lugares que só o imaginário sabe.
Onde está o retrato do medo,
que sabíamos de cor, mesmo sem o olhar?
Onde está a outra menina
que connosco partilhava os frutos
de todas as estações e a quem,
também, chamávamos irmã?
Em vão, esperar a mais perfeita lágrima
para, em nome da sua ausência,
reconstruirmos a casa.


Graça Pires
De Ortografia do Olhar, 1996

17.11.08

Por dentro da noite

Magritte
As mulheres, de passo
travado de amargura,
espreitam no escuro
uma emoção perdida.
Na sua frente, a noite resolve
todos os problemas de ódio,
ou todos os equívocos
que lhes pesavam nas ancas,
impedindo-as de dançar.
Boca a boca se respira
um erotismo deslumbrante.
Há um mundo sensual
debaixo dos seus pés.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

13.11.08

Regresso

Claude Simon


Sacodes do corpo a poeira do exílio.
Os destroços de uma agonia,
duplamente perigosa, incharam-te nos pés.
Vem. Dir-te-ei o que mudou
neste lugar de ventos e de mastros.
Dir-te-ei como me senti intrusa,
sempre que um navio aportou neste cais.
São sombras familiares, as que precedem
o teu anonimato. Um cortejo de pássaros,
antecipa-te o regresso. E chegarás
cansado do rumor da morte,
que na boca dos deuses se ocultava.

De Uma certa forma de errância, 2003

10.11.08

Memórias de Dulcineia IX

Darlene Shiels


Há crisântemos
ao longo das estradas.
Um chão orvalhado
rebenta-me nos olhos.
Eu sei: não há lembrança
que o tempo não apague,
nem dor que a morte não consuma.

Por isso, vai perdendo sentido
a distância que me separa
de todas as esperas.
É mais nítido, agora,
o silêncio que me envolve.
Como se a morte
(ou apenas o pressentimento dela)
viesse, de mansinho, ao meu encontro.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

6.11.08

Em seara alheia



DERAM-ME O NOME


Deram-me o nome
da mãe
da avó
e de outras ancestrais que não conheci

a avó fez jus ao nome
e de Andaluzia onde foi menina
trouxe a espantosa solidão
da cama desabitada
dos filhos todos
perdidos
na guerra

a mãe foi artesã
da alegria
(da minha não da sua)
e passou breve
cisne ao sol
sacrificado

e agora
eu herança
no longe dos seus olhos.

Soledade Santos
Aqui
In: Quatro Poetas na Net. Maia: Sete Sílabas, 2002

3.11.08

Irremediavelmente

Alfredo Cunha

Talvez não valha a pena
amarfanhar palavras
para fugir do medo.
A vida não é um jogo.
É uma espécie de nudez,
onde se perde o pé,
irremediavelmente.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997