29.10.07

Volto à caligrafia da sede

Cartier-Bresson


O outono entra-me pela casa.
Ao longo das paredes sublinho a minha cronologia,
num gráfico de sílabas, susceptível à tristeza.
Neste momento, avalio mal o equívoco do silêncio
frente à disponibilidade das palavras.
Acerto os livros pela lombada e vejo,
nas estantes, as sombras de poetas românticos,
com um imenso rio na expressão dos olhos.
A privação de rostos, torna violentas todas as cores.
Coloco as palavras sobre a mesa
e volto à caligrafia da sede.
Onde estão os pássaros de olhos aguados,
que sobrevoavam, ainda há pouco, as minhas mãos ?

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

25.10.07

Já não posso olhar as palavras

Amedeo Modigliani

Já não posso olhar as palavras como dantes.
O tempo apagou-me das mãos tantos desejos.
É possível que a minha boca
se encha de silêncios,
à míngua de alegria,
como se uma noite inquieta
me ardesse nos ossos
e as aves me segredassem
ausências sem recuo.
Porém, já outros pássaros
reiniciam um voo mais que perfeito,
à procura de um lugar
onde, transfigurados,
possam tecer, de novo, as suas asas.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

21.10.07

Um espaço rival da minha sombra

Willy Ronis

Inesperadamente indago um suposto dia
em que o assombro ganhou asas de albatroz
no meu corpo e voou, a grande altura,
para o sul de um contexto sem remédio.
Ouço a exuberância do prazer
repleta de nocturnos muros,
dissimulados no rito corporal
de uma solidão indiferente a todas as consequências
e espreito o teu rosto por cima do ruído da cidade.
As minhas pernas lentas vincam, no chão,
um espaço rival da minha sombra,
e um aceno indicia todos os sítios,
desertos de palavras onde perigosamente te procuro.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

17.10.07

A fome



Lidar as mais indignadas palavras,
e deixá-las em sangue,
a coberto de qualquer expiação.
A fome é um insulto, longamente
desenhado rente à boca.
O negativo que o peso da história nos legou.
Em nome dela, inventamos, desesperadamente,
uns deuses de estimação, a quem culpamos
dos desacertos do mundo.
E dormimos tranquilos, sem lamentarmos
a nossa própria indiferença.
Os nossos protestos não chegam, sequer,
a ser palavras de ordem para uso caseiro.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

14.10.07

Contra o peito da noite

Christian Hang


Contra o peito da noite me aconchego
sem medo da manhã.
Sei que não sou rival do vento,
nem é minha irmã a lua cheia.
Urgente de viver, simulo o futuro,
como quem saboreia a pureza
no limiar do pecado.
Deitada sobre a terra gravo,
nas paredes côncavas do firmamento,
uma palavra de amor recém-nascida.
E, nem o mais leve movimento das mãos,
abertas sobre a fantasia,
mostrará a dança das sílabas sobre a boca,
onde existe um barco de vidro gritando por um rio.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

10.10.07

A ninguém revelaste o teu nome



Disfarçado na melancolia das trevas,
a ninguém revelaste teu nome.
Eras um vulto, em primeiro plano,
tão indeciso como um pássaro.
Vinhas carregado de remorsos e paixões.
Cicatrizes antigas, denunciaram teu retorno.
Uma mulher rememorou, em teu perfil,
quantos barcos avistou pela proa do olhar.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

8.10.07

O debandar das andorinhas

Stephen Alvarez


Quando o inverno se anuncia,
com o debandar das primeiras andorinhas,
empilhamos a lenha no telheiro.
O frio há-de devassar, sem explicação,
o cheiro da casa e a terra,
impiedosamente alagada,
ocultará a seiva dos pomares.
Junto à lareira, buscarei o teu olhar
para aquecer as mãos.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

6.10.07

Um lugar de sobrevivência

Marc Chagal

Apesar de tudo, a noite
continua a ser um lugar de sobrevivência,
a contraluz sensual de todas as rotinas,
um barco acostado ao largo dos astros.
Há prosas de fascínio a assinalar improvisos
nas pálpebras da manhã
quando, à mercê do acaso,
um abraço é o secreto anúncio de uma festa.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

3.10.07

A rotação da lua nos meus olhos

Andre Kertesz


Na hora em que o poente escurece as minhas pálpebras,
só um secreto rumor me diz, que o meu corpo principia
na inclinação do silêncio: íntimo, profundo, confissão
de si próprio, espaço onde, desamparadas, as pernas
se desinibem e aguardam, inquietas, a rotação da lua
nos meus olhos.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

1.10.07

Em seara alheia



NASCIMENTO DA MÚSICA

Uma das mais recuadas imagens dos meus dias é uma mulher a cantar. Com a sua voz antiquíssima e branca, aquela mulher, à distância de mais de cinquenta anos, continua a embalar-me o coração. As palavras eram de um romance popular, sumarentas, cheias de sol; falavam de amor e de morte, de paz e de guerra, de coisas que não sabia exactamente o que fossem, mas que permaneciam em mim como pequenos nós de sombra ou breves manchas luminosas. O tecido da vida deveria ter a transparência daquelas palavras, já que o pulsar do universo não podia deixar de ser idêntico àquele ritmo amplo e seguro, em perpétua expansão.
A esta imagem, transbordante de ser, não tardaria a juntar-se outra mais secreta: a música do harmónio. Numa aldeia da Beira Baixa, provavelmente em julho ou agosto,quando a força da canícula entra até pelas frestas mais estreitas da noite e nos impede de dormir, uma melodia sobe no clarão da lua, e inesperadamente acaricia o corpo pequeno, intranquilo e solitário que era então o meu.
Acabo de falar do nascimento da poesia e da música, como se ambas jorrassem da mesma fonte; acabo de falar da arte do desejo, embora só alguns anos mais tarde viesse a pedir àquelas águas o que outros pedem ao amor: que me matasse a sede de alegria.

Eugénio de Andrade

In Poesia e Prosa. Lisboa, Círculo de Leitores, 1987