21.6.07

Para tornar legível a emoção

Édouard Boubat

Agora, que uma luz difusa me fascina
retenho a idade em que não ousava
fazer do coração um lugar de conflito.
Escoa-se, de meus lábios,
sem aviso prévio,
um excessivo odor a maresia,
como se o verão atasse em meu pescoço
a sombra das dunas e todos os ventos
afugentassem a inevitabilidade da morte.
É de musgo, a vertigem
onde demoro as mãos,
para tornar legível a emoção.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

20.6.07

A cor do entardecer

Manuel Fazenda Lourenço

Planto urzes brancas
em redor do caminho.
No começo do verão,
será tão intensa
a cor do entardecer,
que os frutos hão-de devorar-me
a boca, para conter a sede.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

15.6.07

Repara


Para o meu filho Pedro

Senta-te perto de mim, meu filhoNão tenho a tua idade. Eu sei.
Também já tive tanta pressa
de desafiar o vento.
Repara :
não há ninguém à entrada da noite.
Deixa que, do teu peito,
se avistem as estrelas.
e arde numa delas. Arde.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

14.6.07

Quem sabe



As ruas têm anjos escuros, ocultos na expressão
das mulheres com ancas de fogo.
Quem sabe, a tristeza seja o rumo dos sonhos,
pesando sobre os olhos, como máscaras
e haja amoras maduras na idade da noite.
Quem sabe, seja a lua a hierofania
com que deuses e demónios preparam
o banquete predilecto dos que amam,
para que os seus corpos se vistam de malícia.
Pouco sei do vocabulário onde se confundem
o delito e a ascese dos encontros marcados.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

12.6.07

Vieram os pássaros

Bates Littlehales

Vieram os pássaros, como um poema,
em louca cavalgada por paredes de luz.
Eu ouvi um tumulto de asas.
Ou era a minha própria voz,
enrouquecida pela sede?
Não posso aquietar a boca,
porque me ardem nos pulsos
os escombros de nomes interditos
e o orvalho de meus olhos seca-me a garganta.
Os pássaros, eu sei, voltaram,
e trazem no bico as nascentes do sul.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

11.6.07

Em seara alheia



OPUS 133

Escreveu-me cartas. Enviou-me
uma roldana de ferro
daquelas que se usam para tirar
água dos poços. Enrolou-lhe um poema
em vez da corda que tem de
suster o balde. Podes falar -
-me de ti: quando estou cansado
eu sou um bom ouvinte.

João Miguel Fernandes Jorge
In Não é certo este dizer. Lisboa, Presença 1997

10.6.07

Os meus olhos doendo nos dela

Balthus

Sem pressa, formulo a urgência
de sombras inquietas
na neblina do olhar,
como se recuperasse um tempo
tão decisivo como a infância.
Circunscrevo recordações sem voz
e perdem-se-me, nas mãos,
os gestos de menina.
Persigo-lhe a imagem,
ou a sombra dessa imagem.
Os meus olhos doendo nos dela.
O meu rosto medindo, no seu rosto,
toda a intensidade da inocência.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

6.6.07

Vamos falar de poesia



A fascinação pela poesia tem sido, até hoje, uma das constantes da situação humana. Seria, contudo, um erro supor por detrás dessa fascinação um sentido e uma significação sem ambiguidade. O amor pela poesia, como todo o amor, é a história dum equívoco. Para a maioria dos homens o convívio com a poesia é a forma simples de ter ao alcance das mãos um mundo cómodo, mais tranquilo que o mundo de todos os dias, ou então a maneira de se alienarem num universo brilhante e raro, equivalente do sonho e do desejo. Pérola de imagens segregada pelo entusiasmo, o terror ou a esperança, a poesia oferece a cada homem o céu e o inferno portáteis de que precisam para iludir a necessidade de buscar no inferno real o céu possível. O amor que os homens lhe manifestam é esse amor aos céus ou infernos particulares, refinamento de um egoísmo inalterável. Adorno ou cócega da alma a poesia suscita em todos os homens, nem que seja uma só vez na vida, um começo de metamorfose semelhante à do autêntico amor, mas é raro que esse instante seja outra coisa do que a promoção de um último egoísmo. É mais a exaltação do mais radical dos nossos desejos que a sua destruição, a morte do «eu» e a ressurreição no «outro» de todos os amores reais. Amando na poesia o pior ou o melhor do que se é, vive-se a ilusão de um amor que não é senão o confortável amor de nós. É desta espécie o entusiasmo e a fascinação que a poesia exerce sobre o comum dos homens, quer dizer sobre todos os homens, pois ninguém pode supor-se permanentemente ao abrigo de ser como o comum dos homens [...].


Eduardo Lourenço
In Tempo e Poesia. Lisboa, Relógio d'Água 1987

5.6.07

Uma ilha escondida na memória

Ansel Adams

Rodeada de mar, convoco o límpido diálogo
dos abismos, para gritar, com Ulisses,
o desejo de ser livre e mortal.
Havia , assim o dizem, uma tempestade em sua boca.
As sereias tomavam-lhe o pulso dos sentidos,
como sulcos de aves no contorno da luz.
A música das marés enfurecia seu sexo.
Contra os rochedos, morriam as gaivotas
enlouquecidas de prazer.
Mas, os deuses fixaram-se no litoral da eternidade,
para lhe indicarem o caminho da morte,
porque ele era, apenas, um homem,
com uma ilha escondida na memória.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

4.6.07

Em seara alheia


Antigamente havia sempre aquela música
tu sabes. Era a música feita à beira da seara
o cântico da sede e das ceifeiras. E nosso
era o direito a entrar na casa onde
tínhamos o fresco dos lençóis, o púcaro

de barro de água fresca, o livro de
palavras feitas verso, o gato persa, o ruído
que provoca o silêncio quando excessivo
a um ouvido surdo, uma maçã de
estio cujo sumo escorre sobre o peito

se trincamos a polpa e entre os dentes
se ilumina um sentido, entre os
dedos um frémito súbito se instala.
Porque a brisa nem sempre é um rumor
às vezes é também parte de um

verso. Antigamente havia sempre a
música do sono que chegava sem pressa e
sem vagar, porque tudo acontecia nessa casa.
Lá dentro havia o corpo à sombra espessa.


Nuno de Figueiredo
In Amargas Cores do Tempo. V. N. Famalicão: Quasi, 2006

3.6.07

Era o tempo das colheitas

Manuel Alvarez Bravo
Era o tempo das colheitas.
Coroada de silvas, uma mulher
dançava, nua, no meio do trigo.
Tão líquida, a luz, contornava-lhe o olhar,
num movimento lento, quase discreto,
como se lhe pusesse, nos olhos,
o improvisado voo das estrelas.
Nunca se soube o que lhe aconteceu.
Mas, às vezes, de noite, ainda um rumor
de solidão se confunde com o vento.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

2.6.07

Conjugar afectos

Menez
Regresso ao modo e ao tempo
de conjugar afectos por instinto.
Distorço a forma, do lado controverso dos fonemas
e não me excluo das palavras mais ousadas,
ou inesperadamente sóbrias,
denunciando vertigens e sossegos.

Nos meus olhos prevalece a morfologia íntima
dos nomes que revestem a garganta dos amantes
quando desatam o silêncio no contorno das bocas.
No meu peito cresce um poema desmedido, peregrino,
que pode ser um rosto, ou uma fonte,
ou, apenas, um barco que se afasta.
Sublinho, então, deliberadamente, as sílabas
do meu nome em tudo quanto leio.
Um vazio de jade molda, em mim, um útero
que se auto-destrói, como uma dádiva
a ignoradas divindades.
Estou a oriente do porvir
e tenho, amarrada aos pulsos,
a disponibilidade dos pontos cardeais.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997