22.12.07

O Natal

Giotto


A festa encenada num presépio familiar
como um anúncio excessivo.
Não é fácil rotular a mensagem de um Deus
comprometido com a humanidade,
que precisou das fraquezas do homem
para se cumprir. Não é fácil.
Por isso, em todos os pinheiros,
há, agora, uma estrela a inquietar o mundo.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

FELIZ NATAL E UM BOM 2008

16.12.07

Um encontro




Deambulei em volta do mundo,
à procura do lado mais selvagem da noite.
Encontrei-te no lugar onde o arco-íris
entorna o excesso de cor.
Havia, no teu olhar, um sinal
de sentido obrigatório,
uma passagem secreta
ajustada ao desejo,
um brilho inocente e cúmplice
que aqueceu o tumulto dos meus olhos.
Subleva-se, agora, um rio no meu corpo,
enquanto, à flor da pele, a urgência da sede,
toma o pulso dos dias
e redime a mendicidade das mãos.


Graça Pires
De Ortografia do Olhar, 1996

10.12.07

Chamando um verso




Não relembrar os campos
mas o múltiplo verde entranhado no olhar.
Dizer quero ser feliz com a boca grávida de espanto,
como se fosse possível lembrar a hora de nascer.
Regressar à liturgia do silêncio
com palavras perturbadas chamando um verso.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

6.12.07

O fascínio da lua



Mais perto da infância, anda no ar
uma nova relação com a felicidade.
Cada manhã evoca o cantochão
inaugural da vida
e, nem as pequenas perturbações,
toldam o fascínio da lua nos meus olhos
consumidos de procurar a luz.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

3.12.07

Deixo-me guiar

Pascal Renoux


Deixo-me guiar pela cor
indefinível das marés.
Enrolo, em cada frase,
toda a areia da praia,
para ancorar as mãos.
Panos de luto nas velas
de um navio assinalam
a solidão dos pássaros
quando a tempestade
lhes aprisiona as asas.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

30.11.07

Diz-se

Magritte

Diz-se que um homem ficou louco
porque lhe pintaram na testa
um pássaro sem asas.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

27.11.07

Nómada da noite

Todd Gipstein

Nómada da noite, entro no coração do texto,
para dizer o exílio nos olhos de Ulisses.
Tenho a idade dos barcos que sonhei.
Um traço de infortúnio atravessa meus lábios,
espessando o sangue que, nas veias, vai cerzindo
a distância que me separa do absurdo.
Há quem enlouqueça a olhar o mar,
com barcos sangrando sobre as costas.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

26.11.07

PRÉMIO

O Vieira Calado poesia de vieira calado teve a gentileza de me oferecer este prémio.

O regulamento:
Eis os parâmetros inerentes à condição:
1. Este prémio deve ser atribuído aos blogs que consideras serem bons,entende-se como bom os blogs que costumasvisitar regularmente e onde deixas comentários.
2. Só e somente se recebeste o prémio “Diz que até não é um mau blog”,deves escrever um post:- Indicando a pessoa que te deu o prémio com um link para o respectivo blog;
- A tag do prémio;
- As regras;
- E a indicação de outros 7 blogs para receberem o prémio.
3. Deves exibir orgulhosamente a tag do prémio no teu blog,de preferência com um link para o post em que falas dele.
Indico os seguintes blogs:

a luz do voo
cabana de palavras
Largo da Memória
Linha de Cabotagem
Menina Marota
PIANO
Plan(o)Alto

25.11.07

Contra a violência

ABAIXO A VIOLÊNCIA DE GÉNERO :
HUMANIDADE NÃO TEM SEXO !!




É preciso reagir. Não ter medo. Ter coragem para denunciar.




E aqui estou à espera!...
-- com este destino
de dar sombra aos muros...

Mas à espera de quê?

Que o despenhar no abismo
me crie enfim asas?

José Gomes Ferreira

22.11.07

Era novembro

Almada Negreiros
Pelo lado interior do tempo
assinalo, com traços de luz,
a cidade litoral onde nasci,
rente à fragilidade do outono.
Era novembro
e uma estranha sede
pairava sobre a terra,
ávida de líquidas paisagens,
quando minha mãe
me tomou nos braços
e disse: esta é a minha filha.
O seu corpo doía de tanta comoção.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

18.11.07

Em busca da própria voz

Picasso


De madrugada, encho folhas de papel
com um discurso sem vestígios da noite.
Inspiro-me na leveza do ar
sobre o meu peito feito cais de embarque
para uma fuga sem aviso
em busca da própria voz.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

15.11.07

Ser solidário



Um diálogo. Um aceno. Um afago.
Um rio a sobrar-nos nos olhos,
quando a pátria conflui
a sul de todo o desalento
e nenhum silêncio é legítimo
para calar os medos;
quando os dias se tornam
intrusos da vida, e nada é gratuito,
a não ser a espera, nas mãos
entreabertas à revolta;
quando resistir é atravessar a desértica
secura da memória, com pássaros
de sede doendo na boca.
Não ceder. Não ceder por dentro do sonho.
Não ancorar o rosto no lugar-comum dos preconceitos.
Viver sem rendições, é o desafio
que nos cabe por inteiro.
Sabemos isso, solidários que somos

neste contrabando de afectos e coragem.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

12.11.07

8.11.07

Do lado mais perfeito do silêncio

Nichy Willcock


Do lado mais perfeito do silêncio
seguro as palavras, ombro a ombro,
como um vício inexplicável.
Deixem-me refazer as noites
da inocência, para que a caligrafia
não apodreça nos meus dedos.
Um brilho oblíquo, escurece,
em meu olhar, um tempo diferido,
que condena e absolve qualquer erro.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

5.11.07

Improviso uma ilha

John Miler


Na periferia da manhã, levemente adiada,
improviso uma ilha.
Tão nua como páginas em branco.
E concedo-me o direito de esperar Ulisses.
A minha fronte marcada com palavras sem destino.
O teu rosto, longamente procurado,
não tem búzios, nem conchas, nem corais.
Na praia, até então intacta,
sinto a luz de teus passos.
Ou será uma onda fugitiva,
a tornar transparente a tua ausência ?


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

3.11.07

Desafio


A Helena da Linha de Cabotagem passou-me este desafio. Aceito-o.

1. Pegar num livro que se tenha à mão.
2. Abrir na página 161.
3. Procurar a 5ª frase completa na referida página.
4. Identificar o livro e o/a autor/a do mesmo.
5. Passar o desafio a cinco bloggers.

Eu podia ter sido um homem
que partiu para sempre.

Tinha-se cansado e agora, lentamente,
começava a acordar para a imensidão
do que abandonara.”

Yukio Mishima
O marinheiro que perdeu as graças do mar

Não sei a quem passar o desafio, pois já o vi em imensos blogues. Deixo-o a todos os que me visitam. Se quiserem aceitá-lo...

1.11.07

É novembro



Ao cair da tarde, anda no ar o olhar dos deuses.
É novembro. A folhagem dissipa
a monótona semelhança das pedras.
Os crisântemos têm vogais errantes
que desconhecemos, como seres mortais.
Rente a um gráfico de promessas excessivas,
soletramos a enorme leveza do silêncio :
Canto gregoriano impresso na garganta.
Começo da sedução no feno dos olhos.
Rua sem sentido em forma de coração.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

29.10.07

Volto à caligrafia da sede

Cartier-Bresson


O outono entra-me pela casa.
Ao longo das paredes sublinho a minha cronologia,
num gráfico de sílabas, susceptível à tristeza.
Neste momento, avalio mal o equívoco do silêncio
frente à disponibilidade das palavras.
Acerto os livros pela lombada e vejo,
nas estantes, as sombras de poetas românticos,
com um imenso rio na expressão dos olhos.
A privação de rostos, torna violentas todas as cores.
Coloco as palavras sobre a mesa
e volto à caligrafia da sede.
Onde estão os pássaros de olhos aguados,
que sobrevoavam, ainda há pouco, as minhas mãos ?

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

25.10.07

Já não posso olhar as palavras

Amedeo Modigliani

Já não posso olhar as palavras como dantes.
O tempo apagou-me das mãos tantos desejos.
É possível que a minha boca
se encha de silêncios,
à míngua de alegria,
como se uma noite inquieta
me ardesse nos ossos
e as aves me segredassem
ausências sem recuo.
Porém, já outros pássaros
reiniciam um voo mais que perfeito,
à procura de um lugar
onde, transfigurados,
possam tecer, de novo, as suas asas.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

21.10.07

Um espaço rival da minha sombra

Willy Ronis

Inesperadamente indago um suposto dia
em que o assombro ganhou asas de albatroz
no meu corpo e voou, a grande altura,
para o sul de um contexto sem remédio.
Ouço a exuberância do prazer
repleta de nocturnos muros,
dissimulados no rito corporal
de uma solidão indiferente a todas as consequências
e espreito o teu rosto por cima do ruído da cidade.
As minhas pernas lentas vincam, no chão,
um espaço rival da minha sombra,
e um aceno indicia todos os sítios,
desertos de palavras onde perigosamente te procuro.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

17.10.07

A fome



Lidar as mais indignadas palavras,
e deixá-las em sangue,
a coberto de qualquer expiação.
A fome é um insulto, longamente
desenhado rente à boca.
O negativo que o peso da história nos legou.
Em nome dela, inventamos, desesperadamente,
uns deuses de estimação, a quem culpamos
dos desacertos do mundo.
E dormimos tranquilos, sem lamentarmos
a nossa própria indiferença.
Os nossos protestos não chegam, sequer,
a ser palavras de ordem para uso caseiro.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

14.10.07

Contra o peito da noite

Christian Hang


Contra o peito da noite me aconchego
sem medo da manhã.
Sei que não sou rival do vento,
nem é minha irmã a lua cheia.
Urgente de viver, simulo o futuro,
como quem saboreia a pureza
no limiar do pecado.
Deitada sobre a terra gravo,
nas paredes côncavas do firmamento,
uma palavra de amor recém-nascida.
E, nem o mais leve movimento das mãos,
abertas sobre a fantasia,
mostrará a dança das sílabas sobre a boca,
onde existe um barco de vidro gritando por um rio.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

10.10.07

A ninguém revelaste o teu nome



Disfarçado na melancolia das trevas,
a ninguém revelaste teu nome.
Eras um vulto, em primeiro plano,
tão indeciso como um pássaro.
Vinhas carregado de remorsos e paixões.
Cicatrizes antigas, denunciaram teu retorno.
Uma mulher rememorou, em teu perfil,
quantos barcos avistou pela proa do olhar.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

8.10.07

O debandar das andorinhas

Stephen Alvarez


Quando o inverno se anuncia,
com o debandar das primeiras andorinhas,
empilhamos a lenha no telheiro.
O frio há-de devassar, sem explicação,
o cheiro da casa e a terra,
impiedosamente alagada,
ocultará a seiva dos pomares.
Junto à lareira, buscarei o teu olhar
para aquecer as mãos.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

6.10.07

Um lugar de sobrevivência

Marc Chagal

Apesar de tudo, a noite
continua a ser um lugar de sobrevivência,
a contraluz sensual de todas as rotinas,
um barco acostado ao largo dos astros.
Há prosas de fascínio a assinalar improvisos
nas pálpebras da manhã
quando, à mercê do acaso,
um abraço é o secreto anúncio de uma festa.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

3.10.07

A rotação da lua nos meus olhos

Andre Kertesz


Na hora em que o poente escurece as minhas pálpebras,
só um secreto rumor me diz, que o meu corpo principia
na inclinação do silêncio: íntimo, profundo, confissão
de si próprio, espaço onde, desamparadas, as pernas
se desinibem e aguardam, inquietas, a rotação da lua
nos meus olhos.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

1.10.07

Em seara alheia



NASCIMENTO DA MÚSICA

Uma das mais recuadas imagens dos meus dias é uma mulher a cantar. Com a sua voz antiquíssima e branca, aquela mulher, à distância de mais de cinquenta anos, continua a embalar-me o coração. As palavras eram de um romance popular, sumarentas, cheias de sol; falavam de amor e de morte, de paz e de guerra, de coisas que não sabia exactamente o que fossem, mas que permaneciam em mim como pequenos nós de sombra ou breves manchas luminosas. O tecido da vida deveria ter a transparência daquelas palavras, já que o pulsar do universo não podia deixar de ser idêntico àquele ritmo amplo e seguro, em perpétua expansão.
A esta imagem, transbordante de ser, não tardaria a juntar-se outra mais secreta: a música do harmónio. Numa aldeia da Beira Baixa, provavelmente em julho ou agosto,quando a força da canícula entra até pelas frestas mais estreitas da noite e nos impede de dormir, uma melodia sobe no clarão da lua, e inesperadamente acaricia o corpo pequeno, intranquilo e solitário que era então o meu.
Acabo de falar do nascimento da poesia e da música, como se ambas jorrassem da mesma fonte; acabo de falar da arte do desejo, embora só alguns anos mais tarde viesse a pedir àquelas águas o que outros pedem ao amor: que me matasse a sede de alegria.

Eugénio de Andrade

In Poesia e Prosa. Lisboa, Círculo de Leitores, 1987

28.9.07

Filho a filho se doendo

Gertrude Kasebier

Há momentos
em que uma orfandade,
esquiva e indefesa,
se me cola ao sangue,
como se me habituasse
às sombras.
A meia-luz que envolve
meus ombros percorre,
longamente, os gestos
das mulheres, intrusas de si próprias,
filho a filho se doendo.
Sobre o meu corpo paira
um insensato rumor que torna
vertical a minha sombra.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

23.9.07

É Outono

Georges Seurat

Faço um barco de papel e embarco, rumo às cenas
baralhadas de um sonho qualquer.
É outono e não sei dizer quem sou ou o que quero ser.
Os meus olhos são rios de palavras afogadas,
onde só posso ver a minha imagem disfarçada de mim.
Percorro então, uma a uma, as horas por viver
e descubro um arco-íris na minha boca
a gritar uma insónia íntima.

Dentro do meu sono ainda me perturba
a tua imagem, miragem do meu deserto
vencido, demora da minha espera.
Era feito de mármore o silêncio
dos teus olhos e por ele escorriam
as palavras que eu dizia, como se fossem água.
Esse silêncio doeu na minha voz,
quando as minhas mãos violaram os gestos
e, entre nós, ficou intacto o diálogo.
Sei agora a cor exacta do vinho
com que brindei à primavera em nome
da presença que tu eras e hoje, ao recordar-te,
sublinhei o sentido dos sonhos e do vento.
Foi o tempo em que a neve presente no teu rosto
gelou os meus lábios até à transparência.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

20.9.07

O olhar vagabundo

August Sander

Tão náufrago como se fora um órfão,
fixou no vazio o olhar vagabundo.
Um estremecimento no seu pescoço,
manchado de juventude,
fez ecoar solitários ventos
sobre os ombros de um destino
ébrio de luz.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

17.9.07

Próximo de Setembro



Próximo do rosto, partilhamos
o sopro e as sílabas de setembro,
quando as cores monótonas
atingem o delírio da mudança
como uma febre alucinante.
Nos nossos lábios,
o naufrágio da voz,
onde cabe inteiro
o soluçar de um corpo
grávido de ausência.
Nenhum regaço se quebra
no abraço ilícito das sementes,
se o tempo das vindimas se aproxima
e, em todos os recantos,
interiorizamos a revolta
como um húmus imprevisto.

Graça Pires
De Poemas, 1990

14.9.07

A família

Paul Strand

Refazemos o dia, pacientemente,
e mastigamos as raízes de um compromisso
quotidiano e social.
Temos em comum o coração
e sabemos que o mesmo fio de sangue
nos tece o equilíbrio.
Por isso modelamos o itinerário de um conforto
partilhado, como se, desse modo, nos fosse
prorrogada a morte e ficássemos cúmplices,
uns dos outros, na teia da vida.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

11.9.07

Em lábios imperfeitos

Manuel Fazenda Lourenço
Com efeitos coloridos
no balancear das pernas
cobri meus lábios de cinza.
Talvez seja necessário
permanecer em silêncio,
ou reinventar palavras
que denunciem uma suspeita
indecifrável, distante, intransponível.
Falo de todos os crepúsculos
carregados de presságios
e do ciúme da palavra
em lábios imperfeitos.
Falo da solidão do olhar,
quando o corpo apenas sente
a coragem que a alma lhe consente.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

9.9.07

Estranhas cumplicidades

Ansel Adams

Nenhum nome rasga o hálito da escrita.
Nenhum poema nasce de um cansaço submisso.
Corre em minha língua um rio transtornado
e sobe-me, à altura do peito, a raíz de caligrafias
ocultas. Digam-me: em que areal escondem,
as gaivotas, o desterro de seus voos ?
Há sempre uma história ligada à deriva dos navios,
que anuncia a aprendizagem de estranhas cumplicidades.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

6.9.07

Vamos falar de poesia



Nunca te procurei. Não te procuro, tão indolente que sou. E, no entanto, acabas sempre por vir: de mansinho, insidiosa... Ó terrível desventura que salva! Em mim te aconchegas com teu tropel de vozes: lúcida desrazão que acalma, êxtase do que pressinto. E vens, misto de assombro e agonia, estranho dizer, talvez poesia.

Victor Oliveira Mateus
In Pelo deserto as minhas mãos. Sassoeiros: Coisas de Ler, 2004

4.9.07

Castelos encantados



Que podemos fazer, se as nuvens
tecem no azul castelos encantados?
Ou serão as sombras dos barcos sem rota,
esperando os marinheiros perdidos
e desvairados do apelo do mar?
Que fazer quando, de olhar assombrado,
é infrutífera qualquer tentativa
de suspeitar dos sentidos?


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

1.9.07

Uma armadilha no peito

Paul Strand


Em madrugadas, vagamente obscuras,
descrevo sombras longínquas,
que perseguem a minha sombra.
Os mais premonitórios sulcos nocturnos
brilham-me nos pés.
Uma armadilha no peito relembra
a exacta adolescência das pálpebras,
quando exibia, no sorriso,
a luz da primavera.
Era menina e havia nos meus olhos tanta fé
que, nem o céu nem o mar excediam,
em grandeza, o meu olhar.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

30.8.07

Um rubor de malvas floridas



Com uma perturbação herdada das sombras,
a luz excessiva de agosto adormeceu nos olhos
das aves fatigadas pela travessia das manhãs.
É possível improvisar, agora, a nesga de cor
que lhes define as asas: um rubor de malvas
floridas, deslumbrando o sol.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

27.8.07

Em seara alheia


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsenquente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Manuel Bandeira
in Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990

23.8.07

Madrugada de pássaros

G. Braque

Madrugada de pássaros, nos disseram.
E falavam do alvoroço matinal do silêncio,
perseguindo a luz.
Era verão. À roda da cintura,
pendurávamos o musgo da manhã
e íamos, de lábios molhados, regar o pomar.
Os teus olhos ardendo no meu corpo.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

18.8.07

Uma mulher

Ansel Adams
Um resto de Agosto.
Uma mulher conhece
o caminho da fonte
porque o seu corpo
é um desvio do mar.
Talvez ela nos mostre
um céu líquido
por detrás dos seus ombros.
Não só as mãos morrem
fatigadas de desejo.
Há cascatas de pedra
nos olhos da memória.


Graça Pires
De Poemas, 1990

14.8.07

A nitidez do tempo

Alex Jawdokimov

A quem anunciarei a súbita clareira,
onde a lua do meio-dia
anula a morte das aves nocturnas?
Há uma cilada de palavras a envolver a volúpia,
no vértice de um sexo quase puro.
A vigília do poema acende-se numa linguagem única
e a forma adejante das letras traça ficções de solidão
nas minhas veias, por onde circulam ódios e paixões.
Qualquer eternidade me aguarda,
porque ouço a nitidez do tempo retocando o meu olhar.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

11.8.07

Orfeu Rebelde

CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE MIGUEL TORGA
12.08.1907-12.08.2007


Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.


Miguel Torga
In Orfeu Rebelde, Coimbra, 1970

9.8.07

Encho os olhos de mar

Michael F. Wood
Encho os olhos de mar
e abro, de par em par,
os meus sentidos,
para deixar passar
todos os barcos perdidos.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

6.8.07

A memória das mãos



Com luz e sombra se desenha
a memória das mãos :
Primordial labirinto dos anjos.
Receptáculo onde o tempo divino é perene
e se manobram os pormenores biográficos
dos que recusam a morte.
Dédalo estava enganado.
Quaisquer asas começam rente ao sol.
O pressentimento do voo tem raízes no fogo.
Um pássaro reflecte nos olhos o cume dos sonhos
e respira luz, à tangente da noite.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

2.8.07

O verão

Vitali

Agosto aqueceu, sem aviso, a margem dos dias.
Por isso, não dizemos o quebranto do sol
sem silabar a ânfora de água fresca,
ou reclamar o sazonal fruto
que anuncia nos lábios uma mitigada sede.
Nenhum hálito enfuna as velas do prazer,
nem inventa o vento que as motiva.
Descoberta a praia onde o corpo se aquenta,
sobeja um mar, no litoral da voz,
para navegar o verbo e incluir, no texto,
as palavras que servem para dizer
trigo, árvore, asa, nascente,
e soletrá-las sem profanar a sombra
que se desprende das pálpebras
daqueles que, à lembrança de um abraço,
se enternecem.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

30.7.07

Até à perturbação

Ansel Adams

Em noites de verão,
povoadas de sombras,
não ouso confessar a solidão.
O tempo altera na voz o destino da luz.
Os sons familiares tornam-se sombrios.
O luar, humidamente cheio,
encobre a raiva,
na boca agitada do poema.
A imagem invertida da lua,
a ferir as mãos
e a desmesurar as palavras
arrasta-me o pensamento
até à perturbação.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

26.7.07

Amanhecer

Pascal Renoux


Quisera perseguir o ângulo mais nítido do olhar
e encher de pressentimentos felizes
o exacto momento, em que a noite
adia um movimento de asas e se faz luz,
amando, maravilhada, as múltiplas
penumbras da paisagem.
Mas, apenas o vento permanece para adivinhar,
sem alarido, a textura da vertigem, em que se
movem as angústias de um azul exposto
à velada brisa da manhã.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

23.7.07

Uma inesperada tristeza

Gérad Castello Lopes

No verão, as mulheres caiam as casas e as memórias.
De branco : como as estevas e a lua cheia.
Os seus anseios se espalham, com a brisa,
na quentura das noites.
Por isso, conservam no olhar
uma inesperada tristeza.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

19.7.07

Ao sol de julho

Pedro Alvarez

Ao sol de julho dançámos um tango.
Subia da terra um aroma estonteante.
Sem receio de levantar os olhos,
tocámo-nos maravilhados.
Um húmido musgo cobria-nos as pernas,
enquanto a luz se bifurcava nas pedras,
e rebentava nas ondas,
e nos estremecia nas veias.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997