Ortografia do olhar
Seleccionar o ângulo de um rosto, sem lhe macular a luz, como se, a meia voz, pudéssemos reter os múltiplos reflexos do júbilo e das mágoas.
23.4.18
LEMBRAR ABRIL
ATÉ SER OUTRO DIA
Mesmo que nos queiram
roubar a luz
não conseguirão
amordaçar a voz
que rebenta no chão
em flor
às mãos cheias
Abril respira a céu aberto
contra nevoeiros
mares desgrenhados
e outros destinos
Ainda há crianças a plantar cravos
no coração das aves
a levar o pão
à boca das sementes
até ser outro dia
Eufrázio Filipe
In: Chão de marés: colectânea de poesia 2013-2016. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2017, p. 11
16.4.18
Dedie
Amedeo Modigliani
Abri
a janela para a manhã
que
despontava e descobri
uma
andorinha sobre o parapeito.
Uma
leve suspeita de ausência
percorreu
o meu olhar.
Talvez,
entre as minhas mãos,
sobrepostas,
apenas uma intuição
imprecisa
se demore.
Talvez
a névoa que flutua sobre as papoilas
esconda
as estrelas
que
ficaram presas no pulso da noite.
Dentro
de meus olhos um mar sem limite.
Um
cais é apenas a pedra que projecta
a
intermitência dos barcos no coração.
Tão
breve a luz na idade do rosto!
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 33
9.4.18
Em uníssono
Moises Saman
Indagamos,
em uníssono, o avesso dos dias
retalhados
por mãos adversas,
para
não nos equivocarmos
com o
rosto deste mundo
em
constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque
estes são tempos exasperantes
de
perder as pátrias e as casas
e os
pais e os irmãos e os amigos
e os
nomes e a memória.
E nas
imensas planícies enegrecidas
é
desabrido o som dos que bradam
quando
as crianças ensurdecem no silêncio.
A
meia-haste, arvoramos a rugosidade
das
cinzas e o rasgão do medo,
para
não permanecermos alheios
à
saturação dos que sangram,
dos
que tombam, dos que resistem.
Graça Pires
In: CONTINUUM: Antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 123
31.3.18
Convite - ANTOLOGIA POÉTICA
A Festa foi linda. Obrigada a todas e a todos que participaram nesta Antologia. É um orgulho fazer parte dela.
Minhas Amigas e meus Amigos: tenho a certeza que vão gostar dos poemas destes autores. Apareçam!!!
Podem também adquirir a Antologia em pré-venda (com desconto) até à data de lançamento (ver canto superior direito deste blogue)
26.3.18
Mulher sentada
Amedeo Modigliani
Quero morar no silêncio perfeito
aguardado pelas
aves migradoras
para voarem até
um lugar sem sombras.
Há muitos
mundos fui mulher ungida
com o sangue e
o leite de minha mãe,
raiz onde se
prendeu o meu nome.
Preparo, agora,
com gestos minuciosos
uma evasão fortuita,
enquanto me
enceno nos espelhos.
Quero que me
circulem no sangue os rios todos
inundando a
boca seca: quase vento, quase sal.
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 41
21.3.18
A Poesia é um fogo sagrado
Steve Thoms
Naquela noite eu só procurava um lugar
para morrer.
Havia o cume da montanha tão perto das
estrelas
e da liturgia dos sons. Havia um xaile
de lã.
Uma casa caiada de gemidos. Uma mulher.
Para quê improvisar o pretexto da morte
se guardava já, delineado no olhar,
um puríssimo lago a antecipar o dia,
o primeiro, quase, em que as palavras
tinham a inteira claridade das manhãs?
Mergulho
no dia como em mar ou seda,
repetia, a mim mesmo, sem parar.
A Poesia é um fogo sagrado a iluminar a
vida!
Graça Pires
In: As vozes de Isaque:
derivações poéticas a partir da obra “O último poeta”, de Paulo M. Morais.
Braga: Poética, 2016, p. 17
12.3.18
Em seara alheia
Amáveis comodidades
Vem viver comigo,
estou cansado do na tua ou na minha casa,
com hora de ponta e portagens pelo meio.
Para mais deixei morrer as plantas,
dá-me pena a solidão do gato,
o teu colchão é péssimo para as minhas costas,
a água do teu chuveiro sai sem pressão,
não tens espaço suficiente para os meus livros,
só pagávamos uma factura de luz,
podíamos ter um cão
e fazer um filho.
Eu gostava de ver crescer um filho contigo.
Raquel Serejo Martins
In: Subúrbios de Veneza. Desenhos de Ana Cristina Dias. Braga: Poética, 2017, p.24
5.3.18
Georges van Muyden
Amedeo Modigliani
Dizem
que as mulheres
não
devem ter opinião.
Ergo
a cabeça ao insulto,
com
os lábios atravessados de ironia.
Nada
expressam os meus olhos,
porque
os povoei de enigmas
para
subverter afirmações sem nexo.
Golpeio
preconceitos: o golpe e a chaga
no
mesmo esmagamento debelados.
Uma
agitação no contorno do decote
rasgou-me,
nas entranhas,
até
ao sangramento, um exílio
onde
acoitei inconfidências e prazeres.
É
precavido o vagar da minha voz
a
silenciar a posse das palavras.
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p.15
26.2.18
Luz
John Martin
Persigo a noite na margem proibida das trevas.
Um júbilo nocturno incendeia todos os espelhos
e sob o coração das sombras vislumbro,
em meu olhar, o mais intenso brilho.
Não sei mais o que dizer.
É tão frágil tudo o que nos pode purificar!
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 18
19.2.18
Em seara alheia
Infância
Lembras-te
Do chão frio da estrada?
Da roupa de lã grosseira
Remendada, rasgada
E vestida de qualquer maneira?
Das jogas quentes na mão
Que o Inverno
Teimava em arrefecer?
Lembras-te da roupa molhada
Pregada ao corpo franzino
Arrepiado e dorido?
Lembras-te
Da masseira vazia e nua
Da sopa crua,
Do candeeiro,
Do halo, luz mortiça
E do vento a entrar
Pelas vidraças?
Lembras-te?
Quando a tempestade caía
E tudo parecia desabar!?
Que medo!
Mas, e falar?
A voz perdia-se na noite fria da tempestade
Lá fora
E cá dentro.
E o medo adormecia a medo
E a manhã acontecia devagar.
Fátima Almeida
In: A sombra dos dias.- Fafe: Labirinto; 2016, p. 24-25
12.2.18
Jeanne
Amedeo Modigliani
Havia
uvas maduras na curva
mais
acentuada da sebe do quintal
e
pão quente sobre a mesa do alpendre,
quando
se me enroscou no olhar
a
serpente entontecida do fascínio.
O
verão concentrara em meus cabelos
todo
o aroma dos ventos do sul.
Por
minha boca se media, em rubor,
o
caudal, alheio ainda, do rio
que
nascia em tua boca.
E
aprendi a amar-te no silêncio
do
teu perfil sem mágoas.
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017
5.2.18
As palavras em pausa
Norvz Austria
As palavras em pausa são como farpas
destruindo o sentido do silêncio.
Que perverso vento arrastou todos os versos,
todas as frases, todas as sílabas?
Que horas fatigadas gelaram os lábios
ancorados num esquecimento sem voz?
Por algum atalho se encontrará
o rasto do veneno, porque a mudez
pode ser um ritual onde se formam
as sombras dobadas no medo.
destruindo o sentido do silêncio.
Que perverso vento arrastou todos os versos,
todas as frases, todas as sílabas?
Que horas fatigadas gelaram os lábios
ancorados num esquecimento sem voz?
Por algum atalho se encontrará
o rasto do veneno, porque a mudez
pode ser um ritual onde se formam
as sombras dobadas no medo.
Graça Pires
In: As vozes de Isaque:
derivações poéticas a partir da obra “O último poeta”, de Paulo M. Morais. Braga:
Poética, 2016, p. 17
28.1.18
Sede
katharina Jung
Aproximo os olhos do deserto
e reconheço que só uma sede antiga
fica suspensa do
regresso da chuva
ou da proximidade de um rio.
Enterro a língua no chão.
Mas os
pássaros cortam os ventos
com seus voos
apressando o inverno
e as sombras que me refrescam a boca.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013
22.1.18
O que é um nome?
Monserrat Gudiol
Grito contra grito.
O combate a estremecer o chão
na vertigem do ódio.
O gesto e o suor a oxidarem o gume
dos dentes, das unhas, dos martelos.
Em delírio, em êxtase quase,
não cediam ao amor, cediam à morte
por terem no sangue um veneno tribal
e a danação dos despojos.
Entre eles, ela e ele, assombrados de paixão.
Chama-me só amor, ele lhe pediu,
vergastando o próprio nome.
Graça Pires
In: A CNB e os Poetas, 2016, p. 36
Maio de 2016, depois de ter assistido ao bailado "Romeu e Julieta", coreografado por Rui Horta, a convite da Direcção da CNB, através de João Costa
O combate a estremecer o chão
na vertigem do ódio.
O gesto e o suor a oxidarem o gume
dos dentes, das unhas, dos martelos.
Em delírio, em êxtase quase,
não cediam ao amor, cediam à morte
por terem no sangue um veneno tribal
e a danação dos despojos.
Entre eles, ela e ele, assombrados de paixão.
Chama-me só amor, ele lhe pediu,
vergastando o próprio nome.
Graça Pires
In: A CNB e os Poetas, 2016, p. 36
Maio de 2016, depois de ter assistido ao bailado "Romeu e Julieta", coreografado por Rui Horta, a convite da Direcção da CNB, através de João Costa
15.1.18
Em seara alheia
Somos sozinhos com tudo o que amamos
Novalis
Voltarei a cada página para colher
porque a palavra tempo se repete
e o silêncio continua nas minhas mãos
Gisela Gracias Ramos Rosa
In: O livro das mãos. Lisboa: Coisas de Ler, 2017, p. 63
8.1.18
A ruiva
Amedeo Modigliani
Soltaram-se
os pássaros vermelhos,
colados
em meus cabelos.
Roçaram
a sombra dos navios
e
voaram, em círculos fechados,
rasando
os areais.
Como
um esboço de naufrágio
no
rosto dos homens
que
afagam sempre os filhos
como
se fosse a última vez.
Como
se, no coração das areias, os ventos
se
enrolassem nas dunas em rituais de paixão.
Regressaram,
depois, os pássaros vermelhos.
E,
lentamente, desalinharam meus silêncios.
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017
2.1.18
A respiração com que celebro cada instante
Albino Moura
Em
silenciosa queda, o rasgo que vaza
secura
e sangue abre-se à rendição
do
gesto elevando as mãos.
No
recinto dos cânticos mais discretos,
talvez
haja um eco de salmos entoados
por
nítidos anjos a devolver-me,
como
herança inscrita em tábuas sagradas,
a respiração com que celebro cada instante.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
18.12.17
BOAS FESTAS!
Agradeço à minha filha, Ana Pires Livramento, a elaboração deste postal. Um beijo grande, filha.
Que este Natal nos torne cúmplices uns dos outros no desejo da Paz.
Que 2018 nos desafie, a todos, a dar mais valor à Vida, à Saúde, ao Amor e à Família.
Que se concretizem os sonhos mais desejados.
Até para o ano. Beijos.
11.12.17
Em seara alheia
Família
sentado no chão da cozinha
a rabiscar um papel
o menino brinca
o cão dorme
debaixo da laranjeira
a mãe passa a ferro
aquela blusa
pela centésima vez
faz dois anos
que partiu o pai
o vento
curioso
espreita na janela
Filomena Fonseca
In: Os degraus da casa, 2015, p. 62
3.12.17
Contratempo
Arno Rafael Minkkinen
Ser cega e ver nos olhos dele
a sombra oblíqua do barco
que
usará para fugir.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013
27.11.17
Sigo o rasto dos sonhos em que me procuro
Francesca Woodman
Por um impulso quase hereditário
sigo
o rasto dos sonhos em que me procuro.
Sou
da estirpe dos aventureiros,
dos
caminhantes, dos fugitivos.
Pertencem-me
os passos,
vagarosos
e apressados,
com
que sulcam os trilhos
do
deslumbramento com o perigo
a
espreitar-lhes a sombra.
De
pulsos abertos mordo o freio
da
memória com os dentes aguçados
a
pungirem a raiz das quimeras
na
pedra onde o incenso ardido
antediz
a imolação do passado.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
20.11.17
Mulher com gravata preta
Se eu escrevesse um poema
havia
de fazê-lo sobre a areia,
para
que viesse o mar, ou a chuva
exaurir
o sentido das palavras.
Houve,
na minha infância,
um
mar antiquíssimo com barcas
acendidas
no meio da noite.
Um
vínculo sagrado ou de sangue
me
liga à memória das ondas.
Da
harpa da lembrança tangem as cordas
mais
sensíveis na demanda de veleiros
brancos
para incendiar novembro.
Nem
sei por que comecei a usar,
quase
em sobressalto, uma gravata preta.
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017
13.11.17
Em seara alheia
Vem depressa enquanto a casa
ainda me conhece.
Os corredores apagam-se
e nos retratos
Agosto está pálido.
O quarto está cheio de vento,
o perfume magoa-se contra a memória.
Há inverno nos móveis,
mas as mãos teimam em visitar
as árvores nas gavetas.
Vem depressa enquanto a casa
ainda me conhece.
Não tarda os ciprestes abrem as janelas
e os muros reclamarão o meu nome
Se não chegares a tempo,
não te preocupes,
deixei a morada aos pássaros.
Alberto Pereira
In: Viagem à demência dos pássaros. Lisboa: Glaciar, 2017, p. 53
6.11.17
Grito
Christine Ellger
Há a palavra em duelo no poema.
Há um grito rasgando
o surdo rumor
da chuva de novembro.
Um grito a cortar a respiração
das árvores
sem folhas.
Um grito que estremece nas mãos
das mulheres estéreis
e no silêncio
das aves que não voam.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013
30.10.17
Mais perto da inocência
Katia Chausheva
Escuto até à exaustão
os rumores de um tempo mais remoto
e evoco os primeiros acenos
onde deixei a espera e o desespero
das noites ao sabor da lua.
Usei nos punhos as pulseiras
interditas à luxúria.
Só de madrugada as trepadeiras
ficavam mais perto da inocência.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
23.10.17
Em seara alheia
AS DOBRAS DO TEMPO
Escuto os sons da casa,
murmúrios
retidos nas dobras do tempo.
Já a voz não ilumina
as sombras que se deitam nas paredes.
Paira um vestígio ténue
dos aromas vibrantes de outrora,
talvez esteja em mim
guardado.
Sou eu mais que um sacrário
de lembranças
que se consome passo a passo
na senda de duvidosa redenção?
Alice Duarte
In: Um pássaro antigo nos olhos. Modocromia Edições, 2016, p. 40
16.10.17
O tumulto das areias
José Pancetti
Com
barcos torneando os ombros
decifro
o rumo das viagens
em
minhas mãos atentas ao desalinho
das
cordas destecidas pelas vagas.
Sei
que os mapas não assinalam
o
tumulto das areias com que o vento
vai
refazendo as dunas.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
9.10.17
Menina com bibe
Amedeo Modigliani
Quem
foi que roubou os meus sonhos
brancos
de menina e me pôs no olhar
a
imensa clareira da tristeza?
Como
esquecer aquele tempo
em
que eu brincava com o vento
e
rebolava na erva e cantava
com
as cigarras e me espantava
com
o desenho das nuvens?
Como
não lembrar os dias
em
que nada quebrava a porcelana
dos
lírios de intacta leveza?
À
margem de trilhos ao acaso
vagueio
para além de mim
sem
que os pés se amarrem ao chão.
As
minhas mãos, sobre o regaço,
estão
trémulas e vazias.
Retenho
as lágrimas
como
se dispersasse as chuvas.
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017
2.10.17
O tempo sobre o tempo
De repente era eu no
prolongamento de mim.
Tracei o próprio
corpo em transparência de tule.
Na ponta das
sapatilhas pousaram aves inquietas.
Esboçaram a leveza azulada
das sombras,
cindidas em singular
aceno.
Rodopiaram a
claridade dos sonhos
até que rosto algum
pudesse resistir-lhe.
De repente eras tu no
prolongamento de ti.
A roçar o meu chão.
Em impulsos cativos
do espaço.
Em tumultos
circulares até ao infinito.
Em vertigem aflita
por cima do abismo.
A fazer da queda um
tão breve equilíbrio,
que o tempo sobre o
tempo renascia.
Depois fomos nós.
Primeiro a sedução,
indecisa ainda,
no improviso do
desejo.
Um movimento subtil a
enredar-se
na demora de pressentir
o gozo.
E desse tardar,
vencidos nos repartimos na dança,
no tango: o prazer do
jugo presumido no olhar.
O corpo todo, que
cede e se recusa no júbilo do sangue.
Ai, devagar, que os
ardis deste cerco nos tomaram.
Graça Pires
In: A CNB e os Poetas,
2016, p. 27
Poema feito depois de ter assistido ao reportório de bailados “Serenade”, “Grosse Fuge”, Herman Schmerman” e “5 tangos”, a convite da direcção da CNB, através de João Costa, Fev. 2016.
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